terça-feira, 20 de novembro de 2012

Um treino qualquer com Finha


O treino está marcado pra 15:00. E as 15:00 em ponto eu e ele chegamos.

- E aê?
- E aê.

Sem brincadeira, essas foram nossas únicas palavras durante toda a tarde.

Nas duas horas seguintes, embora os dois estivessem sempre no mesmo lugar, os únicos sons que conseguíamos ouvir eram os dos pés nos muros, o amortecimento das precisões, as raspadas, as passadas e os tombos. O engraçado é que não rolava em nenhum momento o pensamento de que "estou treinando sozinho". Não havia tempo pra isso.

O espaço era gigante (o centro de criatividade), mas aquele clima de silêncio e concentração fazia o treino render tanto que nos contentávamos com somente o básico e as repetições. Somente o correr e o passar.

Nesse momento não pude deixar de refletir: "Quantos não já teriam reclamado do lugar? Quantos não teriam a criatividade suficiente de inovar a cada minuto? Quantos não já teriam enjoado do que fazíamos ali?". Tudo se dava de forma bastante natural e transmitia a mensagem que guiava o treino dos dois: ser simples e ser Parkour.

Mesmo quando decidíamos trocar de ambiente, não haviam palavras. Um saia da vista do outro e o que ficou para trás logo em breve trazia as mochilas dos dois.

Quando o calor se tornou insuportável, decidimos quase que ao mesmo tempo tirar as camisas. Revelamos o óbvio: corpos lavados em muito suor.

De vez em quando compartilhávamos um mesmo percurso ou movimentação. Não era nem sequer aquela competição saudável de um instigar o outro. Era apenas uma mente alerta sugando experiência de uma outra mente alerta. Não existia o certo. Não existia o errado. Só existia o treino.

Eu sou sempre muito reclamão. Pra mim quase nunca alguma coisa está boa. Mas todas as vezes que treino com Finha volto pra casa muito feliz e com a sensação de dever cumprido.

Acredito que a palavra que define tudo isso é muito respeito:

Respeito que tenho por ele.
Respeito que ele tem por mim.
Respeito que temos ao que ambos buscamos.
Respeito ao espaço que estamos ocupando e as pessoas a nossa volta.
E respeito esse que deveria estar presente  nos treinos de todos. Sempre.

A todos bons parceiros de treino, meu muito obrigado e meu respeito.

domingo, 18 de novembro de 2012

Um Chamado à Luta (Tradução do Texto do Blane)

O novo texto do Blane "A Call To Arms" me tocou tanto que eu passei mais de um dia pensando no assunto até que decidi pedir a ele autorização para traduzir. Isso precisava ser lido por todos. Gastei algumas horas lapidando o vocabulário o mais que pude para que o mesmo sentimento com que ele escreveu pudesse ser entendido pelos brasileiros.

Inspirem-se, utilizem do texto e o repassem (em seus blogs, inclusive) sem moderação. Às Armas!

Agradecimentos ao Bronze pela tirada de dúvidas em alguns pontos.

 

Um Chamado à Luta (A Call To Arms)
Por Chris "Blane" Rowat
Tradução: Duddu


Desde quando uma travessia de 30 metros com uma criança pendurada em suas costas tornou-se menos importante do que um salto de 18 pés entre dois pontos e com uma aterrissagem grotesca? Estou pouco me lixando para suas passadas gigantes e barulhentas, pois há gente por aí com 43 anos, o dobro da sua idade, duas vezes mais forte e que cai de 2 metros e não faz o menor barulho.



As coisas que deveriam importar para o Parkour, não mais importam - e as coisas que hoje são largamente consideradas como impressionantes não são mais quando você as analisa com calma. Nossos valores estão sendo corrompidos.

Algumas vezes, tento olhar para o Parkour de forma neutra, como se eu nunca tivesse ouvido falar sobre ele antes.

O que eu acharia dele se eu tivesse ainda 17 anos e o descobrisse agora, ao final de 2012? Imagino que acharia bem legal e que provavelmente iria mergulhar nesse mundo também. Só que, diferente do que eu vi nove anos atrás, ele não iria me impressionar tanto como fez.

Se você terminar de ler esse artigo e se convencer a respeito dos valores que eu acredito dentro do Parkour, então você irá também se convencer de que se eu não me esforçar para espalhá-los eles irão desaparecer.

Os novos iniciantes irão somente enxergá-lo como uma atividade de pular de locais altos e não como uma prática extremamente versátil e acessível para qualquer um com o desejo de encarar desafios, conhecer e melhorar a si mesmo.

O que eu vi no Parkour em 2003, aos 17:
  • Uma elite de poucos com qualidade de movimentação e atenção aos detalhes em cada movimento que fazia e que esse nível era somente alcançado através de milhares de horas de deliberada prática e treinamento.
  • O espírito de um guerreiro insaciável com seu treinamento e com garra para encarar qualquer desafio, seja ele físico, técnico ou mental.
  • Uma comunidade em crescimento, positivista e inspirada por todos aqueles que vieram antes dela.
  • Um sistema de treinamento e uma comunidade que dava valor a todos os aspectos do Parkour de forma igualitária, e uma consciência coletiva interessada em um Parkour que durasse a vida inteira e não somente alguns meses.
O que eu vejo em 2012, aos 26:
  • Um crescimento em massa do número de praticantes ao redor do mundo.
  • Big jumps.
  • Péssimas aterrissagens.
  • Competições.
  • Uma preciosa minoria tentando se manter de pé sobre os velhos valores e duvidando de suas razões em fazer isso…
  • ...e ultimamente, uma mudança do que é creditado como sendo Parkour.
E é justamente com essa pouca minoria que luta e sobre essa mudança de valores que eu me preocupo.

Eu sou responsável por deixar essa mudança acontecer sem encará-la, tanto quanto é responsável todos aqueles da “minha geração”.  Nós todos ficamos de lado, deixamos o Parkour evoluir, ser modificado e se alastrar pela Internet sem que disséssemos: “Espere um minuto, isso é bom... mas e todas aquelas outras partes do Parkour por qual eu me apaixonei? Onde estão?” 

Eu tento sempre ensinar meus alunos com esses valores em mente e eu sei que um bocado de homens e mulheres também fazem o mesmo por aí. Mas acontece que não é suficiente mantermos esses valores que nos cuidamos com tanto carinho presentes somente em nossas aulas em algumas cidades ao redor do mundo. Temos que mostrar isso em larga escala se quisermos mantê-los vivos. E mais importante do que isso, precisamos nos preocupar em deixar nossos testemunhos para que eles possam ser encontrados por todos aqueles que vierem a se interessar pelo Parkour em busca de algo mais do que big jumps.

Nos últimos anos que se passaram, ao invés de nos mantermos firmes e acreditar nos ensinamentos que passamos a admirar quando conhecemos o Parkour, dia a dia, vídeo a vídeo, nosso sistema de valores foi corrompido. Mesmo aqueles poucos que ainda hoje acreditam que Parkour é para todos, pode sentir que está regredindo, que não é tão bom quanto o cara novo, porque ele consegue fazer um salto que você não acha que consegue, ou talvez você nem tenha vontade de fazer.

Mas se você se lembrar dos valores que te trouxe a prática, então você não irá se importar em saltar tão longe quanto o “cara novo”. Lembra do que uma vez você aprendeu? O que é um salto, grande ou pequeno, sem uma boa aterrissagem? Quando foi que melhorar suas subidas de muro, suas flexões, seus agachamentos, seu quadrupedal ou então aumentar o seu recorde de ficar pendurado (se cair você morre!) se tornou menos prazeroso do que aumentar a distância de seus saltos?

Eu já vi em alguns treinos em grupo as pessoas fazerem piada com o cara que estava lá atrás se fudendo com um colete de peso e tentando fazer suas barras ficarem mais fortes. Quando foi que o que estava sendo executado por ele tornou-se uma parte inferior do Parkour?

Os desafios físicos não são algo novo no mundo do Parkour. Ao menos desde que ele existe, os desafios físicos são parte inerente a ele. Na verdade, como alguns de vocês irão se lembrar, muito antes dos saltos chamarem a atenção, os desafios físicos ERAM o Parkour.

Hoje não são mais. Os desafios físicos (e até mesmo, o treino físico) são atualmente espécie em extinção.



A ênfase mudou com o passar dos últimos anos e o Parkour não é mais o terreno perfeito para se testar do que a pessoa é feita fisicamente, tecnicamente, mentalmente... e emocionalmente.

Não é mais um desafio de saber se você é capaz de correr de uma cidade pra outra e se aventurar a retornar antes do pôr-do-sol. Não é mais um desafio para saber se você consegue empurrar um carro velho numa ladeira com os amigos que você riu e chorou durante o dia. E não é mais sobre conseguir entender o valor de se saltar para uma árvore molhada em caso de um dia você tiver que resgatar um desses amigos que ficou preso nela.

Agora é amplamente visto como um palco para talentos, uma oportunidade para as pessoas mostrarem ao mundo como eles conseguem saltar mais distante do que os outros. Ou então como eles estão dispostos a viajar metade do mundo para fazer o mesmo salto que viu outro cara realizar num vídeo do ano passado.  Só que agora ele chega lá e faz de side-flip.

Eu vejo competições onde o “Melhor Atleta de Parkour” e os “Campeões Mundiais” gastam 37 segundos de corrida tentando fazer qualquer coisa mais impressionante do que o cara que se apresentou antes dele. Isso tudo antes do tempo acabar ou dele ficar sem fôlego. 37 segundos de uma perfomance medíocre? Eu tenho treinado com homens e mulheres que poderiam durar 37 minutos naquela mesma intensidade.

Quem deixou essa babaquice ganhar espaço sem resistência? Quando foi que isso se tornou o foco? Quando foi que fazer um salto mais longe que alguém se tornou algum valor para o Parkour? Quando foi que visitar um pico pra repetir os mesmos movimentos que alguém já fez se tornou a meta? Eu detesto admitir, mas fomos nós que deixamos essa merda crescer. Permitimos isso quando passamos a duvidar de nós mesmos e passamos a cogitar a possibilidade de um big jump ter alguma importância.

Aqui esta o vídeo de Jesse Owens saltando 26 pés (algo próximo a 8 metros) em 1936, Berlin, Alemanha.
 

Esse é um salto enorme mesmo para os padrões e a metodologia avançada de treino que temos hoje em dia. E esse salto não é só distante, mas muito, mas muito mais distante do que qualquer salto já realizado por qualquer praticante de Parkour entre dois pontos. Então porque a comunidade do Parkour (e, de fato, o mundo) fica impressionada quando alguém pula 18 pés entre dois muros e desmorona como se ali tivesse alguma caixa de areia como a de Jesse no vídeo? É porque eles são “corajosos” o suficiente de fazer isso em uma fenda? Em muitos casos o medo de cair só é derrotado pelo pensamento em ficar imortalizado no Youtube diante de milhares de pessoas vestidas em seus pijamas. É isso que você entende por “coragem”? Se for, então, por favor, feche essa página agora porque não há nada aqui pra você.

Mas se tem uma razão pessoal e válida para fazer um salto que carrega um risco para provar algo a si mesmo e então ultrapassar sua própria compreensão e responder as suas dúvidas; agir quando tudo dentro de você quer sair dali e ir para casa com intenção de provar SOMENTE algo a si mesmo; então isso é que é coragem e determinação. E esses são alguns dos valores que verdadeiramente foram construídos no Parkour. Os mesmos valores que a cada dia desaparecem diante de seus olhos. Ficar eufórico e se esforçar o máximo que puder para provar seu valor diante de alguém que esta do outro lado da internet, ou porque seu amigo já fez aquilo uma vez, somente revela imprudência e alguém com vida curta dentro do Parkour.

Eu gostaria de acreditar que a maioria das pessoas que estão lendo esse texto irão concordar que Parkour deixa de ser Parkour sem algum desses valores. Valores como coragem, decisão, fortalecimento, força, disciplina, dedicação e longevidade. Valores como humildade e altruísmo. Integridade.

Existem diversas maneiras que podemos ajudar a mudar positivamente o futuro de nossa prática e o melhor ponto de partida, e o jeito mais fácil, é não permitir que esses valores sejam perdidos.

Podemos inspirar a próxima geração de praticantes e permitir que eles compreendam que Parkour é muito mais do que realizar saltos impressionantes apenas fazendo com que nossas opiniões não adormeçam.

Comente nos vídeos, faça upload do seu próprio, escreva artigos, ensine, converse, viaje e treine da maneira que você acredita que o Parkour deveria ser treinado. Deixe as pessoas verem esse lado aonde quer que você vá. Represente e seja.

Esses valores não precisam ser manifestados como os desafios que mencionei anteriormente, mas ultimamente a única maneira que podemos significativamente crescer é encarar e se adaptar para superar essas adversidades. Isso pode ser feito da mesma forma que você encara um salto, quando ele te amedronta porque você crê que vale a pena enfrentar o seu medo e testar sua habilidade.




Pode ser de forma técnica. Ou talvez seja repetindo uma precisão correndo para um corrimão fino e tentando aterrissar perfeitamente 3 vezes consecutivas. 10 vezes em seguida. 50.

Ou talvez seja um desafio físico afinal. Você pode simplesmente escolher um dos seus exercícios favoritos e fazer um teste pra saber até quando você agüenta refazê-lo. Testar quantas repetições você consegue executar em dez minutos ou quanto de peso você consegue erguer depois de 6 meses de treinamento dedicado.


Na verdade, não importa qual será o desafio. O que importa é que você se desafie com freqüência a fim de realmente se conhecer e saber do que você é feito. Esse confronto e disposição para encarar obstáculos é o coração da fera que o Parkour é, e que infelizmente, a cada ano que passa ele bate cada vez mais devagar. Mas é essa exposição regular a desafios, tal quais esses que montamos, que irá disseminar esses valores nas pessoas.

O que as pessoas parecem não perceber é que um garoto de 19 anos que consegue saltar 18 pés, depois de um ano de treinamento, muito provavelmente não estará mais aqui nos próximos.

Poucas pessoas permanecem mais do alguns poucos anos nesse jogo, seja por conta de um machucado, perda de interesse ou qualquer outro dos incontáveis motivos. Então, ainda que o que ele faça seja impressionante, sim... o que você está treinando para fazer, 'ser e durar', pelos próximos 10, 20 anos... e mais, ainda forte, progredindo, treinando e se divertindo com o Parkour... Isso é muito mais impressionante para mim. Estes são os valores e os objetivos que me impressionaram e que existem naquela pequena elite que mencionei anteriormente. Estas são as coisas que eu não verei perdidas nos anos que estão por vir.
                                                                                                 
Não peça desculpas a respeito dos valores que você acredita e, mais importante ainda, não permita que o Parkour os perca se você acredita neles! Parkour vai se desenvolver e se tornar o que ele tiver que se tornar diante dos olhos de todos, mas se mantenha firme no que você considera importante porque você não está sozinho!

Não o deixe morrer ou então a próxima geração poderá jamais ver ou experimentar o que você viu e fez quando você descobriu o Parkour. Deixe o desafio e a longevidade moldar seu treinamento, seu objetivo e suas motivações. Estabeleça seus próprios desafios, mesmo se alguns deles parecerem impossíveis, pois mesmo neles você aprenderá um bocado. Lembre-se que o desafio não é um desafio se você não sabe como realizá-lo.  Pegue um envelope, faça um convite à dúvida e a sua descrença e transforme esses velhos inimigos em seus aliados. Encare hábitos que parecem ser insuperáveis, freqüentemente, e então você crescerá como pessoa.

Se você quiser repetir aquele pequeno salto, aquele com um ângulo complicado, para uma parede coberta de limo. Se você pretende treiná-lo até chegar o dia em que você poderá realizá-lo com os olhos fechados... então meu caro amigo, você não está sozinho! Eu quero repetir esse salto com você! Mas vamos fazer 50. Só pra ter certeza. E um a mais por aqueles que não podem se juntar a nós. Isso fará a nós dois um bem maior do que aquele salto por cima do telhado carregando uma câmera.

Nós somos uma minoria agora, mas juntos nós somos ainda uma influência sobre aqueles que dizem que praticam Parkour. Ainda podemos fazer nossa mensagem ser ouvida por todos aqueles que conhecerão o Parkour agora, e nos próximos anos.  

Este é um chamado à luta para aqueles que ainda se consideram a vanguarda do Parkour. A hora é agora. Faça a diferença mostrando, compartilhando e sendo todos os outros lados do Parkour que conhecemos e amamos. Os lados que muitos de nós estamos vendo ser esquecidos enquanto a nossa prática cresce.




Blane