sábado, 23 de agosto de 2014

Nada Sei e Pequeno Sou (com ilustração do autor)


Eu acho que estou ficando doido. De uns dois anos pra cá, tenho percebido uma grande mudança acontecendo em mim e, embora eu esteja consciente dela, ainda não a compreendo e não sei se haverá (ou quando haverá) uma estabilização.

Quando ouvi pela primeira vez o "Só sei que nada sei.", de Sócrates, ele havia sido usado de forma descontextualizada. Comumente é assim: as pessoas repetem uma frase no automático e poucos sequer procuram interpretá-la antes de abrir a boca. Óbvio que eu não tenho como perguntar a Sócrates o que ele queria dizer, mas hoje, durante um treino imbecil que rasgou minha mão, achei uma coerência para ela.

O Parkour é um conceito mental que você projeta em si mesmo e no ambiente que te cerca. A tal chamada "filosofia" torna-se real quando você percebe que não é mais capaz de separar de onde vem os seus aprendizados e quando percebe que as mesmas situações que enfrenta no treino na rua estão presentes com você 24 horas por dia: nos relacionamentos, nos estudos, no trabalho, na lavagem de pratos, na zoeira com a galera...


Eu acredito em um "despertar" dentro do Parkour. Em um certo momento, você irá acordar para o que esta fazendo e entender que aquilo que julgava ser um universo é apenas uma poeirinha no espaço. Ele pode acontecer nos primeiros anos de treinamento ou bem mais na frente. Pode acontecer também de passar os anos, a pessoa parar de treinar e tudo permanecer como sempre foi. É uma seleção. E que, no meu caso, demorou bastante para acontecer. Conversar sobre Parkour com quem não despertou ainda é o mesmo que tentar convencer um fumante crônico a parar de fumar: antes que seja possível qualquer espécie de compreensão é necessária uma mudança de pensamento e que só acontecerá quando (e se) a pessoa permitir e buscar por ela. Do contrário, é o murro na ponta da faca. Um verdadeiro exercício de paciência e que resultará na perda do seu tempo.

Desde que tomei consciência de que estou passando por essa transformação, tenho sido presenteado com momentos incríveis e antagônicos ao mesmo tempo: ora sou bombardeado com uma noção de mundo extremamente simples e feliz e ora com muita autocrítica e frustração.

Eu costumo associar o Parkour sobretudo com clareza de pensamento e lucidez. Castigamos tanto os nossos corpos com repetições de um mesmo movimento, nos esforçamos tanto em descobrir as falhas do ambiente e nos tornamos tão capazes de solucionar os nossos obstáculos, que isso faz da gente um profissional na resolução de conflitos: seja da espécie que for e desde que se tenha o conhecimento necessário. A energia que eu preciso para resolver a minha vida é algo que criei em mim conforme me desenvolvia nos treinos. A corrida contra o muro é também a corrida contra o tempo para saber quem você é e do que é feito. E as soluções e conquistas nesse processo, não só irão te dar algumas certezas sobre isso mas, principalmente, te munir de aprendizados sobre tudo.

Porém, essa característica torna-se também uma fragilidade. Quanto mais lúcido me torno do mundo a minha volta, mais sinto necessidade de me voltar para mim mesmo. "O que eu faço? Como trato as pessoas e no que invisto meu tempo?". As respostas nem sempre são boas. A mesma análise crítica e a percepção das falhas que tenho do ambiente a minha volta foram automaticamente transferidas para o restante da minha vida. As vezes tenho que fazer vista grossa para minhas deficiência para que seja confortável viver comigo mesmo enquanto tento corrigi-las.

Hoje vejo meu relógio trabalhar em câmera lenta. É a mesma sensação que tenho quando estou correndo, sem rumo definido, escolhendo técnicas em frações de segundos e decidindo no meio de cada passo se irei por um caminho ou pelo outro. A impressão é de que vivo um "bullet time" real, onde todos os elementos ao meu redor se movem devagar e tenho tempo para observar tudo, tentar compreender tudo e capturar e absorver todos os pixels de cada imagem.


E foi nessa corrida frenética em câmera lenta que eu descobri que nada sei. Dentro dessa condição, passei a enxergar uma coleção de falhas e defeitos. Percebi o quanto sou pequeno diante do todo e o quanto ainda sou ignorante mesmo nas coisas que eu achava dominar. Viver é um ofício complexo e em tempo integral. Estar consciente disso faz essa sua caminhada duplamente mais árdua.

Em contrapartida, isso tem me tornado mais brando, mais calado e mais introspectivo. Alguns amigos já perceberam e perguntaram "O que está acontecendo?" e eu não soube o que responder. Em alguns casos, eu até queria falar muita coisa, mas fiquei calado porque a minha voz não saia. Esse estado de "despertar" me fez entender que cada palavra que sai da minha boca tem um custo e que cada uma dessas palavras é também um atestado de quem eu sou. Logo, se quanto mais aprendo, mais vejo que não sei muita coisa, eu não devo falar se não quiser assumir responsabilidade por algo que ainda não tenho controle. Não enquanto eu não estiver pronto. E isso é um trabalhinho de formiga|, porque eu sempre sou muito direto, ácido e cru quando o assunto é a minha opinião e o que acredito.

Na movimentação, isso tem se refletido de forma mais positiva. Passei a sentir com leveza e suavidade aquilo que antes eu era incapaz. Meu olhar crítico e a atenção aos detalhes parece que tem se multiplicado. A maturação de uma técnica não é algo que se forja da noite pro dia. É ela que diferencia a precisão do iniciante da mesma precisão, no mesmo local e condição, feita por um veterano. Os dois fazem a mesma coisa, atingem o mesmo ponto, desenham o mesmo arco no ar. Porém, quando o iniciante salta, parece que ao sair do chão a mente dele sofre um apagão e ele só recobra a consciência no momento do impacto. Diferente disso, uma pessoa bem treinada, uma pessoa que já é desperta, durante o mesmo movimento, se sente na câmera lenta que falei lá em cima: cada microssegundo é vivido e sentido. Entre a saída do chão e o retorno à ele, há uma eternidade que pode ser narrada. A consciência do que se faz é tão grande, que a impressão que tenho é que se você arremessar uma bola durante esse salto, essa pessoa irá girar o braço e agarrá-la antes de concluir a precisão. É um momento de vazio lúcido.

Essa maturidade na movimentação segura sua cabeça entre os dedos, chacoalha, te coloca de volta no chão e diz: "Agora é com você! Se vire!". E cara... a sensação é incrível.

Durante minha jornada sempre achei o Parkour algo naturalmente agressivo. Agressivo no sentido de que nos tornamos brutos, metódicos, críticos, anarquistas (não conformistas), explosivos, raçudos e resilientes. O corpo se torna mais forte, você se firma no chão com mais austeridade, segura no muro como se quisesse estourar o tijolo na mão... e por aí vai. Tornar-se um ogro faz parte do processo de treinamento. Queremos pular mais longe, queremos correr mais forte, forçamos mecanicamente nosso corpo a quebrar limites e geramos muito barulho nesse processo. Somos muitos barulhentos, meu deus do céu... Não estou falando de barulho em precisões, estou falando de agressividade.

Tenho avaliado muito minha movimentação e cheguei a conclusão de que com o tempo toda essa brutalidade explode e você se vê com um diamante nas mãos. Sua movimentação se torna tão parte de você, tão natural, que o espaço que antes era preenchido com toda essa agressão dá lugar a uma suavidade calorosa, inexplicável e confortadora. É comum passar a realizar ações que consomem uma energia danada, ações que são complexas e complicadas até para se explicar, mas que ainda assim são executadas como se o esforço e o trabalho não existissem. Ouvir das pessoas "Porque quando você faz é tão fácil?" ou "Aff, quando você faz parece que isso não é nada!" se torna uma rotina. Mas o que essas pessoas enxergam quando você se move é uma ilusão. Nada ali é simples. Você é que se tornou simples, sua movimentação encontrou paz e você está muito mais controlado e mais senhor das suas ações.

Eu tenho começado a me sentir assim. E devo confessar que é algo tão encantador que parece magia.

Todo esse meu discurso é, no final das contas, impreciso. Eu estou tentando colocar em palavras algo tão complexo, simplesmente porque eu sou intrometido, enxerido e ousado por natureza. Mas sei que mesmo com tantas letras tentando explicar (ação que já me contradiz), isso tudo é algo tão abstrato e tão lindamente confuso que eu não espero que muita gente compreenda. A não ser, é claro, que você esteja "parando de fumar" e se sinta em processo de "despertar". Caso sim, talvez haverá uma identificação.

O que levo disso tudo é que quanto mais ando, mais longe pareço estar de algum lugar. Quanto mais homem me torno, mais me vejo como um menino. E quanto mais eu grito, menos eu me escuto. Abaixo, eu fiz um desenho desse texto. O problema é que eu não sei desenhar.